INTRODUÇÃO
O segundo sistema arquitectónico que iremos apresentar chama-se Arquitectura entre a Exceção e a Regra. Estamos a falar de uma arquitectura cuja ordem ou regra na sua composição é forte, contudo, é desenhada abrindo espaço ao aparecimento de algumas exceções, de forma que quando olhamos para a imagem final, todas essas exceções consigam ter a capacidade de enriquecer o todo, sem o desvirtuar.
No seu livro Complexidade e Contradição em Arquitectura, Venturi afirma que “Uma discordância hábil dá vitalidade à arquitectura. Pode ter-se em conta as contingências, mas estas não podem prevalecer totalmente. Se a ordem sem uma adequação a determinados fins gera um formalismo rígido, a subordinação incondicional a determinados fins sem ordem significa o caos”, e, portanto, num projecto de arquitectura a ordem deve sempre existir antes de poder ser quebrada.
No acto de criação, o projecto pode partir de uma métrica ordenada para nos ajudar a controlar e dominar os limites do novo edifício. É numa fase inicial que essa métrica vai ordenar, de uma forma regular e coerente, a estrutura e programa do edifício.
Contudo, ela vai encontrar circunstâncias irregulares, intencionais ou impostas, como por exemplo, a forma do terreno, a exposição solar, a cércea dos edifícios vizinhos, os alinhamentos, o programa, etc. Estas circunstâncias irão quebrar ou alterar a ordem da métrica inicial, criando assim o que chamamos de momentos de exceção. Saber controlar esses momentos de exceção é das tarefas mais trabalhosas que o arquitecto pode ter, mas também das mais estimulantes.
O arquitecto pode e deve explorar quais os momentos ideias onde essa métrica pode quebrar ou ceder, conseguindo desconstruir ou alterar partes do edifício sem perder o controlo da unidade e do todo. Ora, é quando conseguimos quebrar sem desordenar, que estamos a encher de significado as nossas criações, começando elas a ganhar “vida própria”. Algumas das casas pátio desenhadas por Ludwig Mies Van der Rohe, são bons exemplos que refletem este sistema.

Mies van der Rohe . Casa Pátio

CAPÍTULO 1 - QUANDO A REGRA APERTA
Estamos perante um sistema bastante abstracto e que está presente em inúmeros edifícios construídos ao longo de várias épocas. Podemos dizer que é um sistema que pode adquirir vários graus de liberdade, deixando escapar mais ou menos exceções à regra, dependendo muito das circunstâncias envolventes.
Contudo, neste ensaio não nos interessa generalizar sobre o tema, muito menos analisar quais os edifícios mais relevantes que o justificam. Interessa-nos sim, focar a nossa atenção em dois exemplos específicos, onde a exceção à regra aparece de forma bastante subtil e discreta, ou seja, onde o grau de rigidez imposto pela regra é tão forte, que a exceção apenas consegue ser lida “à lupa”, nascendo a partir dos pequenos detalhes.
Nos próximos dois capítulos serão analisados dois palácios italianos renascentistas inseridos nos seus respectivos meios urbanos. Como veremos, são casos muito interessantes de se analisar, pois é precisamente nas cidades onde as regras e as circunstâncias “apertam” mais a arquitectura. Como se não bastasse, ambos os casos de estudo remetem para o período renascentista, onde estão presentes as regras rígidas de composição da arquitectura clássica. O primeiro caso de estudo é o Palazzo Farnese em Roma, o segundo, o Palazzo Tarugi em Montepulciano. Por último será apresentado um edifício de Habitação Colectiva localizado em Lisboa, projectado pelo nosso atelier, e que tem como ponto de partida os dois edifícios anteriores.
CAPÍTULO 2 - PALAZZO FARNESE
Um dos mais imponentes palácios italianos do século XVI, o Palazzo Farnese (1515-1541) localiza-se em Roma e foi desenhado por Antonio da Sangallo, o jovem. Em todo o seu desenho, desde o alçado às plantas, apresenta uma absoluta regularidade e uma completa simetria, como manda a boa regra do classicismo.
Começando por analisar a planta do piso 0, percebemos que o pátio central organiza todo o projecto. Quase todos os espaços adjacentes a este pátio são simétricos, contudo, quando olhamos com mais atenção para os dois corpos dos dormitórios laterais, percebemos que a forma modular da métrica se adapta ao programa, permitindo que no lugar dos dormitórios se consiga encaixar uma longa escadaria de acesso ao piso superior.

Palazzo Farnese

Quando chegamos ao piso 1, a métrica repete-se, mas a liberdade na composição espacial aumenta, e com isto, as exceções também. Apesar do pátio continuar perfeitamente quadrado, uma das suas galerias laterais transforma-se numa sucessão de salas interiores que permitem o atravessamento contínuo, mantendo assim a condição de galeria de circulação. No conjunto das salas viradas para a praça, a métrica permite criar um único espaço, na forma de uma grande sala, alternando assim o desenho das cinco salas que existem no piso 0. Esta alternância espacial entre pisos cria uma exceção, pois não ocupa o centro do palácio e perde assim a simetria e alinhamento com o pátio, fugindo à regularidade de toda a métrica.
Quando chegamos ao piso 1, a métrica repete-se, mas a liberdade na composição espacial aumenta, e com isto, as exceções também. Apesar do pátio continuar perfeitamente quadrado, uma das suas galerias laterais transforma-se numa sucessão de salas interiores que permitem o atravessamento contínuo, mantendo assim a condição de galeria de circulação. No conjunto das salas viradas para a praça, a métrica permite criar um único espaço, na forma de uma grande sala, alternando assim o desenho das cinco salas que existem no piso 0. Esta alternância espacial entre pisos cria uma exceção, pois não ocupa o centro do palácio e perde assim a simetria e alinhamento com o pátio, fugindo à regularidade de toda a métrica.
CAPÍTULO 3 - PALAZZO TARUGI
O Palazzo Tarugi em Montepulciano (1515), foi desenhado por Antonio da Sangallo, o velho. Estamos perante um edifício clássico que também tem uma regra forte, mas ao contrário do exemplo anterior, a sua composição de fachada é mais variada e livre.
Nesta composição, a regra é nos transmitida por elementos de ordem clássica, como os arcos, as pilastras, os frontões que coroam as janelas, etc. Contudo, a composição destes elementos cria uma falsa simetria, pois a partir de um eixo simétrico que nasce a meio da fachada, os elementos compositivos replicam-se, mas são tratados de forma diferente. São redesenhados e reinterpretados, ora sob a forma de vazios escavados na fachada, ora numa escala e posição diferentes, criando uma dinâmica variada na volumetria, sem dúvida mais estimulante.

Palazzo Tarugi

Apesar do recurso a exceções mais “extravagantes”, neste caso de estudo a ordem da fachada nunca é quebrada, fazendo com que o todo mantenha sempre uma perfeita coerência e monumentalidade. Uma monumentalidade que não é árida nem pomposa, mas que funciona muito bem devido à riqueza volumétrica introduzida por estas exceções.
Contudo, não podemos deixar de realçar que são os elementos clássicos “vulgares”, que ao serem tratados e adaptados com mestria, nos traduzem esta riqueza. Trabalhar com os elementos existentes faz parte do trabalho criativo do arquitecto. Ele deve e pode ter a capacidade de os substituir e reinterpretar quando necessário. Uma nova arquitectura poderá ser, significativamente, reinterpretarmos um novo conceito e uma nova utilidade para eles.
CAPÍTULO 4 - EDIFÍCIO NA RUA FILIPE DA MATA
No final do ano de 2022 fomos contratados para projectar um edifício de habitação colectiva na Rua Filipe da Mata em Lisboa. A primeira condicionante com que nos deparámos, foi o facto de termos de projectar sobre uma volumetria já definida, cujo PIP (Pedido de Informação Prévia) já tinha sido aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa.  Com isto, o nosso enunciado de projecto apresentou-se logo com inúmeras condicionantes, tais como, a volumetria exterior, a cobertura inclinada de duas águas, a dimensão do logradouro a tardoz, bem como a localização do núcleo de escadas e elevadores no interior do edifício.

Cartulário Pombalino

Contudo, após uma análise cuidada à linguagem dos edifícios existentes nesta rua, decidimos impor-nos a nós próprios uma nova exceção. Devido à grande variedade de edifícios tardo-pombalinos, definimos que o caminho mais adequado para a linguagem do alçado principal seria o da continuidade e não o da ruptura, optando por explorar uma nova composição harmoniosa baseada nas métricas da arquitectura pombalina.
CAPÍTULO 5 - VERSATILIDADE ESPACIAL
Contudo, não foi só na fachada onde a ordem teve de quebrar. Tal como no Palazzo de Farnese, foi importantíssimo começar a redesenhar a compartimentação interior a partir de uma métrica coerente. Esta teve que se “agarrar” ao núcleo de escadas e elevadores já definido, permitindo o encaixe do novo programa adaptado às necessidades das futuras famílias que irão habitar os apartamentos.
Partindo então dos limites deste núcleo, a métrica passou a fixar os limites de um novo “motor” que arruma todas as instalações sanitárias no centro da volumetria do edifício, deixando os espaços habitáveis mais perto da iluminação exterior proveniente das fachadas principal e tardoz.
Este “motor”, permite uma versatilidade espacial, e com isto, a criação de algumas exceções, pois ao fixarmos as instalações sanitárias em todos os pisos, conseguimos jogar com a localização das salas e dos quartos, de forma a virá-los para a rua principal ou para o logradouro a tardoz.
Esta flexibilidade permite dar prioridade à localização da sala de estar/jantar, considerado como o espaço de permanência de maior importância na disposição do programa. Portanto, no piso 1, as salas dos apartamentos T3 e T2 viram-se para a fachada tardoz, usufruindo do espaço exterior relvado no logradouro a norte; nos pisos 2, 3 e 4, ficam viradas para a fachada principal, tirando partido da melhor exposição solar a sul.
Um pouco à imagem do Palazzo Farnese, se a métrica for bem organizada e definida desde o princípio da criação, ela poderá e deverá ter a elasticidade para se adaptar face às condicionantes que o programa apresenta.
CAPÍTULO 6 - O ALÇADO
Tal como o alçado do Palazzo Terugi partiu da composição de elementos de ordem clássica, o alçado por nós proposto partiu da composição de elementos de ordem pombalina. Quando o analisamos, facilmente identificamos esses elementos, no entanto, ao aprofundamos o nosso olhar, começamos a encontrar pequenas nuances na linguagem.
A primeira exceção aparece no desenho do embasamento em pedra lioz. Tema recorrente na cidade de Lisboa, o revestimento em pedra lioz no piso térreo sobe até à cota do pavimento do primeiro piso, criando assim uma base sólida e resistente onde assenta o resto da fachada, muitas vezes revestida a outro material. No entanto, o embasamento por nós proposto não termina no pavimento do primeiro piso, subindo até meio dos vãos de sacada, criando assim uma certa ambiguidade, que solta o revestimento da métrica dos vãos, fazendo assim, a clara distinção entre os “dois mundos”.
A segunda exceção aparece no desenho dos vãos e das varandas de sacada. No primeiro piso desenha-se uma varanda contínua para receber o embasamento em pedra lioz. Parece que esta varanda pertence a um só grande apartamento, quando na verdade pertence a dois. Daí para cima, acompanhando o revestimento em azulejo, a métrica dos vãos altera entre vão de peito e vão de sacada. Estas trocas irão gerar algum movimento na composição, mas sobretudo, irão trazer ainda mais ambiguidade à leitura do interior, pois nos pisos 2 e 3 parece que os apartamentos são mais pequenos, quando na verdade, têm o mesmo tamanho que os apartamentos dos pisos abaixo e superior. Por fim, no piso 4 voltamos a ter a varanda contínua, com o único objectivo de fechar e “rematar” a composição do alçado, contribuindo para a coerência do todo.
A terceira e última exceção aparece nas guardas das varandas. O facto de as arestas serem boleadas, transporta as guardas para um universo que não é muito comum nos edifícios pombalinos de Lisboa. É uma pequena exceção que ajuda à diferença, pois enuncia uma plasticidade no desenho da guarda que se solta da base da varanda, ganhando a sua própria autonomia, ao reinterpretar um elemento vulgar da arquitectura pombalina.
CONCLUSÃO
Concluímos este ensaio da melhor forma, pois percebemos que este sistema arquitectónico tem muita margem para ser trabalhado, com mais ou menos exceções, sejam elas mais ou menos extravagantes. Tudo depende do caminho escolhido pelo arquitecto criador. Sabemos é que para estas exceções aparecerem, a ordem inicial tem de ser forte e clara, mas não em demasia, por que se não caímos num formalismo rígido. Terminamos este ensaio relembrando as palavras que foram escritas na introdução; Quando as circunstâncias desafiam a ordem ela deve quebrar, mas têm de ser quebradas cirurgicamente e habilmente, pois são essas “quebras” que irão trazer riqueza e validade à própria arquitectura.
FIGURAS
fig.01 - Casa Pátio desenhada por Ludwig Mies van der Rohe em 1934,
fig.02 - Fotografia antiga da fachada do Palazzo Farnese,
fig.03 - Plantas dos pisos 0 e 1 Palazzo Farnese,
fig.04 - Fotografia antiga da fachada do Palazzo Tarugi,
fig.05 - Representação de alçado, ilustrado no Cartulário Pombalino,
fig.06 - Plantas dos pisos 1 e 2,
fig.07 - Imagem 3D do Alçado virado para a rua Filipe da Mata.

BIBLIOGRAFIA
- CAPITEL, Antón; La arquitectura como arte impuro, Fundación Caja de Arquitectos, 2012
- CAPITEL, Antón; Tres Sistemas Arquitectónicos - Pátios, Partes e Forma Compacta, Fundación Arquia, 2016
- FRANÇA, José Augusto; A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989
VENTURI, Robert; Complexidade e Contradição em Arquitectura, Martins Fontes, São Paulo 2004

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