PONTO DE PARTIDA
Foi em 2016, no centro Ismaili em Lisboa, onde assisti à apresentação do livro - Viagem de Estudo, Arquitectura Mediterrânica na Andaluzia, segundo número da colecção In Situ, Cadernos de Viagem.
Este Caderno de Viagem representa o registo de uma viagem de estudo realizada em 2010 ao Sul de Espanha. Organizada por um grupo de docentes da minha antiga faculdade (FAUL), teve como principal objectivo, proporcionar aos alunos o desenvolvimento de um olhar crítico sobre a arquitectura através da observação e desenho In Situ de algumas das obras mais emblemáticas da região da Andaluzia, que na sua maioria são de raiz islâmica. Deste modo, o livro reúne um conjunto de desenhos de análise e de observação, onde com toda a atenção e detalhe, os alunos representaram e registaram as tais obras “emblemáticas”, “procurando encontrar/reconhecer características matriciais no espaço e na forma dessas arquitecturas, que os permitisse desvendar nexos com a contemporaneidade”1.
Para mim, assistir à apresentação deste livro foi um momento completamente revelador, pois mostrou-me que até então, todas as viagens de estudo que realizara, apesar de interessantes e atrativas, acabavam por não ter um lado operativo, ou seja, nessa altura, quando visitava as cidades e os seus edifícios, retirava pouca informação sobre o que aquela experiência In Situ me proporcionara, e não a registava para mais tarde a recordar ou analisar. Estava portanto, a faltar um olhar mais analítico e observador, que através do desenho (no meu caso específico), me ajudasse a decifrar a realidade que estava diante os meus olhos.
Desde então, comecei a planear melhor as minhas viagens, definindo melhor e com mais rigor as rotas, as cidades, as vilas, as aldeias, os monumentos e os edifícios chave a visitar. Viajar transformou-se numa arte bem mais rigorosa e num “jogo”, para o qual vou sempre preparado e cujas regras são bem definidas à priori, de forma a conseguir os melhores resultados.

PENSAR ATRAVÉS DO DESENHO
Foi através do Desenho e da sua capacidade de “filtrar” a realidade, que voltei a registar determinados edifícios. Desenhar tornou-se num método de reflexão e representação de ideias sobre as espacialidades mais essenciais ou permanentes da Arquitectura.
O Desenho não substitui a experiência espacial, ou seja a realidade, no entanto, explica-a e transforma-a à minha maneira. Essa realidade é registada, não só no papel, mas também na minha memória, transformando cada detalhe em matéria para ser usada no meu complexo processo de criação. Trata-se do desenho como um processo de investigação e de conhecimento. No final do dia, quando volto a casa ou ao escritório, o que trago de cada viagem, não são só os desenhos que vou fazendo, mas também as ideias e os pormenores que ficaram gravados dentro de mim por tê-los desenhado.
Pensar pelo desenho acaba por ser uma forma de fugir à realidade. Contudo, essa fuga obriga-me sempre a imaginar, e o meu traço, ao tentar explicar o meu pensamento, é capaz de dar uma nova vida às minhas ideias. “Há muito que os artistas e os poetas nos ensinaram que a realidade necessita por vezes da imaginação para se tornar compreensível.”2

A MINHA COLEÇÃO PARTICULAR
Assim, cada viagem que fui fazendo, bem como cada edifício que fui visitando e registando, passaram a ter uma enorme importância no desenvolvimento do meu processo criativo. “Le voyage utile, como é referida por Le Corbusier, a viagem formativa por oposição ao turismo, é uma oportunidade excepcional para a constituição da Collection particularie.” 3. Para nós, arquitectos, a escolha e a reunião desse material, permite-nos organizar um espólio fundamental com vários exemplos e referências, que numa fase posterior, através de uma passagem complexa, consciente ou inconscientemente, são reciclados no projecto arquitectónico.
Começo então a criar a minha coleção particular de edifícios. Antigos, modernos ou contemporâneos, há espaço para todos. Uma motivação colecionista que me permite reter, para mais tarde recordar e reelaborar. Assim, com uma “obsessiva” organização e intuição, começo a reunir e registar, não só elementos excepcionais da arquitectura, mas também elementos banais e comuns que vão aparecendo de surpresa em cada viagem.

NOVE TEMAS PARA INVESTIGAR
Após esta pequena síntese, torna-se importante esclarecer como organizo o meu material de trabalho, os meus desenhos, e de que forma consigo facilmente “arrumá-los” na minha memória, tornando-os operativos no meu processo criativo.
Baseado na organização dos desenhos realizados pelos alunos na Viagem de Estudo à Andaluzia, arrisquei começar a criar o meu próprio conjunto de temas. Cada desenho que faço pode conter um ou mais temas, mas de forma geral, há sempre um que prevalece, e que ganha um peso relevante na organização.
Cada tema tem como base os valores fundamentais da arquitectura, cuja relevância reconhecemos como transversal e permanente em todos os tempos, indo desde a implantação do edifício até à sua pormenorização, percorrendo as escalas da paisagem, da cidade, do edifício e do detalhe. Com isto, podemos avaliar e comparar edifícios de épocas totalmente diferentes, como por exemplo, uma igreja românica do século XII com um museu de arte moderna do século XX. Podem existir “pontos de contacto” nestas arquitecturas. Esses pontos, são os tais valores fundamentais intemporais da arquitectura, que são sempre válidos independentemente da época histórica a que pertencem, e que queremos “reciclar” nos nossos novos projectos.
É claro que estes temas estão sempre em constante transformação, e que de hoje para amanhã posso acrescentar, retirar ou até mesmo aperfeiçoar alguns deles, contudo, para já, interessa-me partilhar com o leitor nove temas:
1- Composição da Fachada – representação da caracterização formal e das proporções dos alçados exteriores ou interiores, bem como a sua constituição física, maciça e construtiva, procurando reconhecer na sua espessura nichos de ocupação.
2- Corpo da Arquitectura – representação da volumetria total do objecto arquitectónico, bem como os materiais de construção que o constituem. Desenho que tenta perceber o equilíbrio e proporção entre as formas.
3- Concordância entre Materiais – representação da ligação entre as diferentes materialidades que dão forma à construção. Proximidade crítica entre materiais com identidades diferentes.
4- Relação Interior-Exterior – representação da ambiguidade que caracteriza certos lugares onde se celebra o estar dentro e o estar fora, tais como arcadas, alpendres, etc. Jogo entre a privacidade e o público.
5- Sequências Espaciais – representação de sistemas transicionais de lugar para lugar, registando a progressão espacial entre espaços de diferentes características e dimensões.
6- Contraste Luz/Sombra - representação da gradação entre a luz e a sombra de um espaço bem como a relação intrínseca com a temperatura e com a ventilação.
7- Objectos intermediários do espaço – representando os elementos activadores do espaço, que permitem o estabelecimento de práticas. Dispositivos para se estar.
8- Enquadramentos Visuais – representando um ponto de fuga ou uma orientação específica controlada pela arquitectura, de forma a enquadrar ou emoldurar determinada vista.
9- Forma Urbana – representando a morfologia urbana de uma aldeia, vila ou cidade, onde se percebe a escala do edificado, bem como a presença de elementos urbanos como ruas, praças, pátios, etc.
Alguns desenhos realizados pelo autor
CONCLUSÃO
Termino este pequeno ensaio sintetizando as ideias que foram abordadas ao longo destas linhas. É impressionante como por vezes, basta uma viagem de estudo bem organizada, para despertar em nós uma pequena luz, que faz com que passemos a olhar de forma mais clara e consciente para o nosso próprio trabalho, mudando radicalmente a nossa forma de pensar. Bem estruturadas e organizadas, as viagens que fazemos e os edifícios que visitamos podem ser determinantes na nossa forma de pensar e criar Arquitectura. Contudo, não podemos estar reféns da nossa preguiça, e devemos olhar para as viagens de forma operativa, utilizando sempre que possível, várias ferramentas que estão à nossa disposição, como a fotografia, o desenho ou a escrita, de forma a investigarmos as cidades ou os edifícios de forma quase “obsessiva”. Quantas mais viagens fazemos e mais edifícios visitamos, mais fácil é começarmos a reunir e organizar a nossa coleção particular, que nos irá acompanhar sempre no processo criativo. Quando chegamos ao escritório e começamos a reunir o nosso material de viagem, torna-se importante (para mim pelo menos!), organizar e arrumar as nossas referências por temas, com o objectivo de mais tarde, implicitamente ou explicitamente, contaminarem o futuro projecto arquitectónico.
Talvez este seja o objectivo da viagem, “ir à procura de”, como uma vontade de descobrir um princípio sistemático, uma lógica de iniciação ao desenho e da organização do espaço, para mais tarde esse princípio contribuir para a descoberta e entendimento daquela que poderá ser a nossa forma particular de projectar.
“Então, assim sendo, o que é projetar? Parece ser, acima de tudo, assumir-se e logo defrontar-se. Ser capaz de projetar é ser capaz de se colocar perante si próprio, de acreditar, de saber superar as dúvidas, as contrariedades, de saber o que se quer e por que meios consegui-lo. Tudo isto, decisivamente, connosco próprios. Saber estar só para poder entrar em ação com os outros.” 4

Citações
1 SPENCER, Jorge, Viagem de Estudo, Arquitectura Mediterrânica na Andaluzia, op. Cit, pag.9
2 SPENCER, Jorge, Viagem de Estudo, Arquitectura Mediterrânica na Andaluzia, op. Cit, pag.14
3 RAMOS, Rui, Ler a viagem como passagem para o projecto: a lição da casa Turca em Le Corbusier, op. Cit, pag.195
4 COSTA, Alexandre Alves, Centralidade do Real - Onze arquitetos, onze textos, onze projetos improváveis, op. Cit.

Bibliografia
COLQUHOUN, Alan, Despalzamiento de conceptos em Le Corbusier, (1972),  in Arquitectura moderna y cambio histórico: ensayos 1962-1976, Gustavo Gili, Barcelona, 1978.
COSTA, Alexandre Alves, Centralidade do Real - Onze arquitetos, onze textos, onze projetos improváveis, Edarq, maio de 2019.
FREIRE, Fernando et al, Viagem de Estudo, Arquitectura Mediterrânica na Andaluzia, Caleidoscópio, 2016.
GOETHE, Johann W., Viagem a Itália, (1813-1814), Relógio d’ Água, Lisboa, 2001.
NEVES, José; Doze Preceitos para Usar um Caderno de Viagem, Revista ORIENTE, nº14, Abril de 2006.
RAMOS, Rui, Ler a viagem como passagem para o projecto: a lição da casa Turca em Le Corbusier, in Ler Le Corbusier, Centro de Estudos Arnaldo Araújo, Porto 2010.
ZUMTHOR, Peter, Atmosferas, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, dezembro de 2006.

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