Le mépris é um filme “diamantino, no sentido de que tem múltiplas faces e todas elas reflectem sentidos diferentes”. Uma dessas faces fez a proeza de perdurar na minha memória, estimulada por certas particularidades do filme que me chamaram à atenção: o drama da música composta por Georges Delerue e Piero Piccioni; a atmosfera quente do espaço natural e construído; e o movimento delicado das personagens.
Revi o filme várias vezes, pensando sempre que era o meu olhar de arquitecto, familiarizado com a História da Arquitectura, que me prendia às filmagens na casa Malaparte, obra tão icónica da arquitectura do século XX. Mas logo me apercebi de que a força do filme não residia só na casa, e que o sentido que eu procurava transparecia também noutros detalhes da obra. Compreendi, portanto, que a casa era apenas um dos mecanismos, que ajudava ao funcionamento de uma máquina engenhosamente montada.
O presente ensaio pretende apreciar a linguagem cinematográfica de Le mépris, começando por analisar a face do diamante que tanto me chamou à atenção, e partindo depois à descoberta das suas outras particularidades.
OBRA DE ARTE QUE OPERA COMO CITAÇÃO
No seu ensaio “La mort de l'auteur” de 1967, Roland Barthes desenvolve a tese de que a obra criativa é um somatório de citações infinitas, de ideias entrecruzadas, provenientes de um passado cultural comum. Estas intersecções constituem anomalias semânticas, que buscam interagir e provocar o espectador para que ele as interprete: primeiro no seu significado literal; depois, entrando por terrenos incertos, no significado simbólico.
Os Dadaístas e Surrealistas deram corpo a esta tese, utilizando a estratégia da estranheza como motor da criação plástica moderna. O Ready-made L.H.O.O.Q, realizado por Marcel Duchamp em 1919, é um excelente exemplo. Sobre um postal da icónica Mona Lisa, o artista representou um bigode, reformulando o significado da obra. Ao questionar a condição artística do objecto, Duchamp estava a pedir ao espectador que o reinterpretasse.
Jean-Luc Godard realizou, também ele, uma obra de arte que, recorrendo aos mesmos processos de criação, faz parte desta “família”. Trata-se do filme Le mépris, de 1963, que Jonathan Rosenbaum considera “o novo filme tradicional de Jean-Luc Godard”.
UM FILME CLÁSSICO-MODERNO
Sinopse (Alerta Spoiler): a Odisseia de Homero está a ser rodada em Capri sob a direcção de Fritz Lang. O produtor do filme – o americano Prokosch – não aprecia a versão sofisticada de Lang e pede ao argumentista Paul Javal que reescreva o argumento. Conhece, entretanto, Camille, a bela mulher de Paul, e procura seduzi-la. A Camille a ideia parece agradar, tanto que começa a manifestar desprezo pelo marido. É a reunião de todos na casa de férias de Prokosch que vai despoletar o fim da relação conjugal.
Ao contar a história do fim de um amor, Le mépris gravita em torno da teoria de Roland Barthes. O filme é o exemplo acabado de uma obra de arte que, de uma forma extremamente criativa, se apropria das mais variadas citações e simbologias. Recorrendo a diversos fragmentos literários, cinematográficos e arquitectónicos, Godard cria um “novo discurso”, em que a tradição, inserida num contexto e ambientes modernos, é passível de uma nova leitura.
A pergunta que se coloca é: qual o sentido maior que o realizador pretende transmitir, quando junta as várias citações e simbologias que compõem o seu filme?
UM FILME CLÁSSICO-MODERNO
Quando fala sobre a escolha da ilha de Capri como o lugar escolhido para a filmagem da segunda parte do filme, Godard deixa uma pista:
“A segunda parte do filme passa-se em Capri; utiliza a excepcional localização da Casa Malaparte, envolvida por enorme e imponentes rochas selvagens, que submergem directamente no reino de Poseidon, que não esqueçamos, é um dos poucos deuses que não ama Ulisses e não o protege. É por esta razão que a localização geográfica da casa é tão importante. Sozinha em frente ao mar, a casa irá reforçar a ideia de um mundo Odisseico, proporcionando-lhe uma realidade e presença quase palpáveis”. 
Estas palavras indiciam que o filme pretende recriar o mundo mitológico dos deuses. Para o conseguir, Godard utiliza com audácia as ferramentas cinemato-gráficas que melhor ajudam a representar uma atmosfera ou presença divinas. Ao ver o filme, o espectador mergulha neste mundo e sente-o de uma forma quase física. No entanto, é importante deixar claro que o realizador não pretendeu reproduzir o mundo antigo, há muito perdido, mas sim reinterpretá-lo à luz dos vícios e vicissitudes do homem moderno, por via de uma linguagem cinematográfica inovadora. Este é o ponto-chave; é assim, realizando um filme clássico-moderno, que o autor estabelece empatia com o público. A pergunta que se coloca é a de saber que ferramentas cinematográficas foram utilizadas para recriar esse novo mundo?
Foram várias as ferramentas que o cineasta teve à sua disposição quando realizou o filme. No entanto, para atingir o verdadeiro sentido mitológico, há quatro que se consideram imprescindíveis:
NARRATIVA
A história de amor entre Paul e Camille é o tema central da narrativa. É a história de um amor falhado (alguns vêem no filme um reflexo das complicações matrimoniais de Godard com Anna Karina), de um amor conturbado, em perda ao longo do filme.
O paralelo entre esta história de amor e a história de Ulisses e Penélope é feito quando Paul reflecte sobre o desinteresse de Ulisses pela mulher, que julga que lhe foi infiel. O filme coloca, portanto, lado a lado, duas histórias de amor fracassado. E é através desse paralelo, que Godard joga em dois tempos – presente e passado mítico – com o tema da infidelidade. Infidelidade que acaba por ferir a relação entre Paul e Camille.
Ao abordar um tema tão actual – aliás, intemporal - Godard aprisiona o espectador, fazendo-o meditar num dos problemas que aflige o relacionamento amoroso. À medida que o filme avança, o espectador vai ficando cada vez mais desgastado, acossado por um sentimento de profunda insegurança. Godard liga o mundo mitológico à realidade, mas não permite que o espectador se entregue à imaginação e viva uma “Odisseia” em pleno, obrigando-o, a todo o momento, a reassentar os pés na terra.
ESPAÇO NATURAL
A primeira parte do filme passa-se em Roma na Cinecittà e na casa de Paul e Camille, no entanto, a verdadeira dimensão mitológica só é revelada ao espectador no espaço em que decorre a segunda e última parte, a ilha de Capri em Nápoles.
O ambiente é a costa mediterrânica, território marcado pela suavidade das suas montanhas, pela fertilidade da sua terra, pela amabilidade do seu clima e pela presença do mar. Este território é apresentado em toda a sua grandeza e esplendor, numa palete de cores, de que se destacam o cinzento dos grandes rochedos sobre o mar, o verde seco dos bosques, o azul sereno das águas e o amarelo quente do sol. Um verdadeiro espectáculo pictórico que, no entanto, não poupa o espectador à sensação dual, simultaneamente amável e ameaçadora, que a natureza provoca no ser humano.
Ao optar por um ambiente contraditório, cujas formas naturais abrem ao espectador ora um caminho de sonho ou devaneio, ora um de medo e desconforto, o realizador revela-nos a sua genialidade. Na paisagem que escolheu, o medo pode ser induzido pela monumentalidade e dureza dos rochedos, e o sonho pela calmaria do mar e o calor do sol. Godard filmou a rica paisagem mediterrânica, porque quis representar uma realidade sobre um cenário ideal, carregado de mito.
ESPAÇO CONSTRUÍDO
Para completar a sua fórmula mitológica, o realizador procurou na arquitectura a cor que lhe faltava: “Desde o ponto de vista cromático, toda a segunda parte estará dominada pelo azul profundo do mar, o vermelho da casa e o amarelo do sol: encontra-se assim uma certa tricromia próxima da fórmula antiga.”
Com efeito, ali onde a terra encontra o mar, uma arquitectura vermelha parece nascer do próprio rochedo. As características excepcionais deste lugar exigiram do arquitecto Adalberto Libera que se libertasse de convenções e do peso da História. Satisfazendo de fundir a casa na rocha, o autor projectou um prisma oblíquo, que se adapta subtilmente à dinâmica da topografia envolvente.
Este fabuloso objecto não só se harmoniza perfeitamente com o cenário natural, como tem um impacto muito interessante no filme. Com a sua forma ambígua, cria um enquadramento quase abstracto, que reforça o sentido mitológico, assumindo-se como o palco ideal para despoletar na imaginação do espectador as mais variadas interrogações: será um templo dedicado a Poseidon? Uma casa privada do século XX de linhas puras e modernas? Uma prisão isolada de difícil acesso? Um navio encalhado? Um anfiteatro virado ao oceano?
PERSONAGEM FEMININA
Godard realiza o seu filme com poucas personagens, todas elas bem escolhidas. Há, no entanto, uma que se destaca: Camille, interpretada de forma magistral por Brigitte Bardot, uma estrela, cuja presença ofuscante enche o ecrã.
Tal presença deve-se, essencialmente, ao conjunto dos seus atributos físicos: loira, bonita e dotada de um corpo perfeito, como se da deusa Afrodite se tratasse. Tais atributos são valorizados pela sua caracterização ao longo do filme. Em Capri, Camille ora veste uma camisa rosa e uma saia azul - tons leves e frescos de Verão -, ora dois roupões de cores quentes, o amarelo e o vermelho. Com qualquer uma destas indumentárias – mas também na falta delas - a personagem está em total harmonia com a envolvente. Quando J. Maragal comenta o quadro La Pastoral, de Joaquim Sunyer, realça as afinidades entre a personagem feminina e o ambiente mediterrânico da obra. Penso que o seu comentário se aplica muito bem à personagem de Camille:
“Me pareció encontrarme en una encrucijada de nuestra montañas, de estos montículos tan característicos de nuestra tierra catalana, áspera y suave al mismo tiempo, simplemente enjuta (limpa), como nuestra alma… He aquí la mujer en la Pastoral de Sunyer: es la carne del paisaje: es el paisaje que, animándose se ha hecho carne. Aquella mujer allí no es una arbitrariedad, es una fatalidad: es toda la historia de la creación: el esfuerzo creador que produjo las curvas de las montañas no puede detenerse hasta producir las curvas del cuerpo humano. La mujer y el paisaje son grados de una misma cosa; y el artista fascinado por las líneas del paisaje verá brotar de su pincel, sin quererlo, las líneas del cuerpo de la mujer”
Ao sugerir a figura intemporal de Penélope, a esposa enigmática, Brigitte Bardot dá também à personagem Camille uma dimensão quase mítica.
CONCLUSÃO
Termino este ensaio sintetizando as ideias que foram abordadas ao longo destas linhas. O texto fala sobre cinema, mas, mais do que isso, procura demonstrar como Godard é um artista completo, com uma criatividade comparável à de outros artistas de diferentes ramos de expressão.
Godard agarra numa série de citações e metáforas e reinterpreta-as num novo filme absolutamente moderno. Um dos sentidos que ele tenta recuperar é o de um mundo mitológico. Em Le mépris, o realizador foge aos temas mitológicos “convencionais” (que o espectador conhece da literatura e da pintura romântica), e recria-os sob formas ajustadas à realidade actual. Formas essas que são consolidadas por meio de quatro ferramentas cinematográficas: a história da infidelidade, a atmosfera mediterrânica, a casa Malaparte e a personagem Camille.
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