Primeira parte
Para a edição especial Pandemia, do Jornal da Ordem dos Arquitectos, terminei um pequeno (diria mesmo miserável) contributo questionando-me sobre como seria no futuro o entendimento da profissão e dos seus profissionais sobre a sua própria informação, ou seja sobre a forma como os arquitectos comunicam para si e para os outros. No fundo, qual seria após este período de transição o papel da representação, fotografia, renders, desenhos ... num mundo onde a expectativa sobre a comunicação alterou-se após um cárcere sanitário. 
Seria, como me perguntei, uma confirmação do que se espera ver ou de um ideal do que se quer ser?
Emendo hoje esta pergunta e a sua formulação de outra forma, é sempre assim quando damos tempo ao tempo. A pandemia, como período intermédio entre as viagens serem proibidas e os restaurantes deixarem de requerer os certificados de vacinação, acelerou as transformações da sociedade fazendo-o de uma forma subtil que escapa ao entendimento do cidadão comum. 
Este
                   …ou melhor escrito
                                                                    …cada um de nós, vivemos esse momento sem tempo para processar o que nos aconteceu pois assim que o ritmo da informação abrandou e a rotina normalizou, logo a nossa atenção foi recapturada por notícias constrangedoras de um possível apocalipse nuclear. No fundo evitou-se que, num dia comum, quando nada acontece e as crises anunciadas a cada hora são sempre como os velhos rostos do costume - e os políticos declaram uma e outra vez que sem eles haveria catástrofe – as pessoas ao cruzarem-se entre si pelas ruas trocam olhares, e alguns dos seus olhares servem para verificar se o outro diz também para si,
Então, a vida é isto!
Enquanto escrevo estes pensamentos soltos sento-me no comboio encolhido no meu canto junto à janela e observo como um malandro sorrateiro o comportamento de um jovem pai com a sua filha dois lugares adiante. Espero que não haja nada de estranho em admitir isto, a última coisa que quero é extrapolações grosseiras e cancelamentos nas redes socias e por isso deixam-me afirmar a minha defesa para esta invasão da privacidade alheia:
Tal como uma mosca que é atraída pela luz também a minha curiosidade foi atraída pelo movimento sobre-humano com o qual este jovem americano (não sei se é relevante para a descrição) pulula de um estímulo para o outro. Mesmo sendo capaz de desculpar o seu frenesim com o açúcar que por esta altura lhe deve correr nas veias (em meia hora contei seis barras energéticas que comeu com gosto) ele não deixa de escrever capítulos inteiros de mensagens tanto no Messenger como no Whatsapp, consulta o Tinder onde vê o estado para o qual evoluem os seus engates e adiciona mais um par de likes caso estes falhem.
Parece-me muito trabalho é certo manter tantos canais de conversa em simultâneo, mas mesmo este mestre da comunicação faz uma pausa na escrita para escorrer a vista por uma selecção gourmet de vídeos do lnstagram, ou Tik Tok, ou o que estiver agora na moda. Depois, sem compasso de espera, troca a aplicação pelo jornal online para o obrigatório consultar das histórias sobre a invasão da Ucrânia e quando se cansa de ler passa para o canal de Youtube onde algum "especialista/ comentador" lhe faz o resumo do estado da guerra.
Por fim…
                    …nova pausa...
                                                    …e recomeça o ciclo, enquanto a menina dorme tranquila e a seu lado.
Confesso como o meu interesse é consequência de algumas leituras cruzadas com as quais por vezes ocupo o meu tempo. Não deixo de pensar e neste texto partilhar, como este excitamento constante que a comunicação hoje nos oferece é paradoxalmente uma estagnação da vida íntima de cada um que se deixa levar pela cascata de estímulos que o espectáculo oferece. A vida, sobretudo a vida nas cidades, é hoje mediada pela imagem que ocupa os espaços expectantes da nossa rotina e por isso se apresenta tanto pendurada nas empenas despidas que vemos ao passar de carro como nos ecrãs brilhantes dos nossos smartphones quando esperamos pelo metro. Semelhantes a um retábulo exibido na sala branca de um museu, estas imagens encerram em si mesmas o seu próprio significado, são fragmentos descontextualizados de uma realidade paralela que introduzem tanto um espaço como um tempo diferentes no quotidiano do observador. É aqui que o seu engano se começa a revelar porque esta representação apresenta-se ela própria como um lugar de falsa consciência ao competir com outros estímulos que procuram captar a atenção fugaz do cidadão, sendo por isso criados sem profundidade de significado para poderem ser imediatamente apreensíveis durante a curta janela de oportunidade da qual dispõem.
Ora é exactamente nesta relação intrusiva que a imagem mediatizada se insere, operando uma cisão entre o significado que atribuímos às coisas reais e sensíveis à medida que nos relacionamos com o mundo. Por analogia constante com a nossa vida somos assim levados a crer como entendemos temas vastos como a pandemia ou a guerra por estarmos subcarregados de estímulos parciais que se misturam com a rotina que nos é familiar e conhecida. Trata-se do resultado da actuação da consciência humana como propriedade intrínseca na construção da nossa individualidade, do nosso Self, que nos coloca no centro da compreensão do mundo. A nossa percepção entende a realidade a partir da "certeza" de que existimos como entidades únicas e evidentes ou, parafraseando Hegel, a consciência de si não existe senão para ser reconhecido, a consciência existe em si e para si.
super-ego
Na memória descritiva de Balllon Dog, Jeff Koons explica a importância da superfície reflectora da obra como instrumento para "fortalecer o observador na sua existência." Para o artista ao oferecer ao observador o retorno da sua própria imagem através do objecto contemplado estabelece-se uma relação que o fortalece na "confiança que tem em si próprio.”: pois "reflecte-se nele e certifica-se de si mesmo."
Numa outra perspectiva proto acutilante, Damien Hirst manifesta na sua obra a realidade polida do observador através da apresentação "domada" do grotesco que a vida em sociedade procurou afastar. A sua reinvenção física das imagens de Francis Bacon atingiu a notoriedade internacional com obras como Out of Sight, Out of Mind ou The Physical lmpossibility of Death in the Mind of Someone Living. Nestas a morte e a natural decomposição dos corpos é suspensa do tempo ao serem emergidos em álcool formaldeído. O resultado que no fundo é semelhante a qualquer exposição num museu de história natural, adquire lugar no discurso artístico tanto pelo significado do título como pela estética da estrutura que contem cada animal, assumindo-se como um ecrã minimalista que abre a janela para o dantesco.
Retirados tanto do meio rural produtivo, no caso das vacas, ou do habitat natural do oceano, no caso do tubarão tigre, estas obras descontextualizam estas realidades e oferecem-nas no mundo domado dos museus e das galerias retirando a percepção emocional que existe na experiência da actividade que gerou estas mortes, tanto às mãos do talhante como do pescador.
É este o mundo que os dois nos apresentam nas suas obras, celebrando a construção da sociedade que se observa constantemente a partir do referencial pessoal de cada um. Neste mundo a Arte já não apresenta nada de novo, nenhum abanão gerado pela presença de algo "sublime" pois ela é o próprio observador e nada lhe oferece a descobrir além da sua própria opinião sobre o reino limitado do seu ser.
Introduzindo agora uma viragem neste pensamento, quando Proust começa a desvendar o seu carinho pela escrita que virá a desabrochar no decorrer da sua Recherche, ele explica a dificuldade de entendimento completo do outro, "Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, é percebido em grande parte através dos nossos sentidos, ou seja, permanece opaco para nós, (...) Se lhe sucede uma desgraça, esta só nos pode comover numa pequena parte da noção total que temos dele", esta conclusão é de seguida reforçada quando o autor entende como mais complicado que o entendimento alheio é o entendimento que o próprio tem de si, … mais ainda, numa pequena parte da noção total que ele tem de si é que a sua própria desgraça o poderá comover."
A vida apresenta-se assim em janelas e a cultura parcelar é hoje o Zeitgeist do século actual sobre o qual o seu significado é construído. Muito antes, no início do século XX, Walter Benjamin já escrevia sobre esta nova vida das imagens ao questionar-se sobre o papel da pintura como Arte na era da câmara e da reprodução instantânea.
Ao contrário de Proust que no parágrafo acima citado elogia a composição do romancista que é capaz de alargar a janela da percepção com elementos imateriais da narrativa e que imprimem no leitor uma visão mais completa das personagens, Benjamin entendeu o poder da câmara para focar o detalhe, retirando-o da "aura da presença" que a obra original carrega. Com este foco no particular não é o observador que tem que se diluir no impacto gerado pela obra mas é esta que tem que se aproximar do indivíduo, o sublime perde-se e sobra simplesmente o gosto estético e pessoal.
Para Benjamin esta é a sociedade do primeiro-plano que ele compara ao cinema que se havia afastado da linguagem tipo dos espectáculos de representação presencial como o teatro ou a ópera. Nestes os actores exageram a sua voz e o seu gesto para se destacarem da cenografia que completa o espaço e enquadra a imaginação da plateia que assiste.
Por sua vez, no cinema, a abertura da imagem não é a abertura larga do palco que enquadra a acção em simultâneo, mas ao invés disso é apresentada pela abertura da câmara que se aproxima do actor e afasta para segundo plano os restantes elementos da acção: assim o observador pode saltitar num diálogo entre cada personagem, focar a sua angústia no rosto maquiavélico do vilão ou estacionar sobre o longo beijo dos heróis com o qual se encerra a narrativa.
A Arte passou a ser ancorada no indivíduo preocupada somente com as emoções que nele incita. Por sua vez, o espectáculo deixou de ser simplesmente um conjunto de imagens para se assumir como uma relação entre pessoas mediada pelo virtual, é a expressão da separação entre o homem e o homem. Assim, tal como o cinema, a actual forma de comunicar caracteriza uma sociedade do primeiro plano, cuja imagem representa uma perspectiva ultra-focada que perde a percepção do espaço como um todo. Trata-se da celebração de um ultra-individualismo, de um superego, onde cada um se trata como uma entidade evidente, de direitos absolutos e, tal como no cinema, deixa o entorno a correr em segundo plano, bem lá atrás.
Infelizmente este é um empobrecimento trágico da nossa vida pois esta imagem é uma sombra, um mundo de representação que nasce da própria sociedade mas que adquire cada vez maior autonomia, eventualmente desligando-se de cada aspecto da vida em comunidade.
continua...

Bibliografia
BENJAMIN, Walter; The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, Penguin Books, 2008;
BERGER, John; Modos de Ver, Amígona, 2018;
BERGER, John; Fellow Prisioners;
DEBOURD, Guy; A Sociedade do Espectáculo, Antígona;
ESPlNOSA, Baruch de; Ética;
HAN, Byung-Chul; A Salvação do Belo, Relógio D'Água, 2016;
PLATÃO; Minos;
PROUST, Marcel; La Recherche du Temps Perdu;
SIZEK, Slavo; PANDEMIC.

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